Questões Sociais - Educação

As etnias negras atingidas pela escravização foram desterritorializadas e assim, tiveram seu desenvolvimento solapado. Entretanto, mantiveram elementos estruturais com suas invariáveis que possibilitaram um amalgamento na diáspora forçada das Américas que permeou todas as culturas postas em contato e, no que nos interessa, a brasileira entre elas, na qual são visíveis as marcas tanto materiais como simbólicas, a despeito da incessante negação sofrida.

As contradições políticas, mesmo de setores que almejam uma outra sociedade, são imensas, acabando por cometer iguais equívocos, comparáveis aos que são perpetrados por aqueles que possuem a visão de mundo que hegemônica e historicamente atentam contra a alteridade.

Os Estados Nacionais, mesmos os que visualizam a Diversidade pelo menos como retórica, não tem sabido compreender a alteridade, porque o controle social é a sua tônica. Assim esta democracia “possível” acaba por funcionar como um arremedo de convivências, pois a sua radicalização não tem passado de pirotecnia, mais como um símbolo do que efetiva concretude com acesso de todos aos bens sociais. Por isso que todo cuidado é pouco para que não se esteja operando, talvez, inconscientemente sob um viés de forma a corroborar com a naturalização de uma cognição subalternizada, reificando-a assim.

Um projeto pedagógico voltado para a educação quilombola, portanto, deve primar pela valorização dos vetores civilizatórios, trazendo à tona a visão de humanidade das etnias negras escravizadas, para assim configurar que a humanidade negro-africana e dos quilombolas em especial, como pressuposto não ocidental, esta edificada mediante as violências das invasões.

Uma proposta de educação voltada para as populações de afrodescendentes principalmente as do contexto “do campo” não pode descambar para uma educação que resulte numa formação para uma suportabilidade ou naturalização hierárquica das condições desiguais de existência.

Um outro importante cuidado que se deve ter é quanto às propostas pedagógicas que a despeito das suas conotações inovadoras, enquadram os “Outros” numa perspectiva de mundo que mais uma vez violenta os “sujeitos” historicamente aviltados na constituição das suas identidades, como afirmação de uma outra visão de mundo antagônica a ocidental. É preciso estar atento e pugnar contra os projetos que visam e tem insistido na liquidificação das singularidades.

O projeto de uma Escola Quilombola e Etnodesenvolvimento: uma proposta pedagógica experimental deve ser efetivada sob uma ótica que o oriente a mesclar compromissos com o teórico e com um ativismo que ensejem radicais transformações no cenário da população negra, ou afrodescendente, em toda a geografia do nosso território.

Nessa dimensão, uma primeira compreensão é a de que os territórios quilombolas devem ser apresentados à sua dinâmica histórica e civilizatória na expansão da sua cosmovisão tanto material como simbólica para desta forma ser apresentada como uma visão de mundo diferenciada e, portanto, que corporifique uma identidade particular ontológica. Com as comunidades indígenas essa é uma realidade, assegurada inclusive pela LDB em vigor.

Veja-se as comunidades dos povos asiáticos instalados tanto nos centros urbanos como no meio rural, nelas são mantidas todas as tradições e, note-se, não são folclorizadas. Pois efetivamente norteia o cotidiano daquela gente mediante todo um processo pedagógico de construção de conhecimento como formação incondicional que estruture os componentes de tais grupos étnicos, conferindo-lhes autoconceito, auto-imagem e autoestima.

Assim tais grupos se relacionam com a sociedade abrangente na sua altivez mediante seu contexto civilizatório. Ou seja, eles devem ser, e são, em primeiro lugar eles mesmos, sem nenhuma subalternidade cultural.

Para não nos reportarmos tão somente aos grupos étnicos asiáticos e de outras nacionalidades européias, lembramos-nos da comunidade Cafundó na qual se observa elementos estruturais e estruturantes fundamentais para a manutenção daquela comunidade quilombola. Além de toda uma gama de procedimentos culturais, figura um dos aspectos de vital importância que é a língua falada no quilombo com base num “léxico de origem banto-quibundo”.

Uma “escuta” deve ir para além de uma referência, uma citação. Tantos são os ouvidos que distorcem as falas ou fazem uso delas de forma a adequá-las como bem querem. As ciências sociais são acusadas historicamente de distorcerem fatos e contextos para assim justificarem as teses e as hipóteses que constroem, guarnecidas por teorias no geral europocêntricas.

Nesse ideário, pesquisas, estudos e elaborações têm acabado por reafirmar “o Grande Outro hegemônico – aquele que serve de referencial universal – e todos os outros subalternizados a ele [...]”.

Um projeto de educação quilombola portanto tem que estar atento para as armadilhas que estão, como verdadeiras “minas de guerras” secularmente postas pelo caminho.

As teorias pedagógicas podem ser, ou se tornar, “minas” pois que histórica e secularmente têm atingido os afrodescendentes provocando profundas seqüelas tanto material, no sentido da marginalização social, como simbolicamente na internalização ou introjeção da sua própria negação.

Paulo Freire é significativo quando fala da “desafricanização” e imputa à “reafrizanização das mentalidades” como forma de libertação dos povos africanos atingidos pelo colonialismo.

Esse ideário pode e deveria valer para a diáspora africana das Américas, para os quilombos e quilombolas, sobretudo, como uma máxima norteadora dos projetos pedagógicos, para desta forma possibilitar que a “singularidade e originalidade, designem o Outro diante do outro, pois é a alteridade que constitui a própria essência como Outro”.

A chamada política de “reconhecimento” vem provocando grandes equívocos, danificando identidades e pertencimentos. Essa política tem contribuído para reafirmar que “o negro para se constituir como pessoa tem de passar pela referência ao homem branco”.

Cientistas sociais, quaisquer que sejam, que não se valem dos recursos da hermenêutica como também da exegese para interpretar e entender as escutas que fazem, cometem verdadeiros atentados aos grupos ou segmentos que procuram reconhecer, porque sem essas nuances a cultura do “outro” é tratada de maneira descontextualizada e não considerada como “uma tessitura de significados”.

Essa demanda exige conhecimento, um mergulho na cultura do “Outro” de forma a se deixar ser interpenetrado pela epistemologia dela. Se o inverso acontecer, por mais que se queira e mesmo avocando as mais diversas teorias sob as quais sejam encaixadas falas, depoimentos, etc., como fruto das entrevistas, o produto final não passará de um arremedo que vai produzir ao contrário da boa intenção, dano.

A propósito, trabalhar com comunidades quilombolas em qualquer parte do território nacional pressupõe ter em mente as teologias desenvolvidas no período de 1500-1759. Desconhecer ou ignorar as ações das teologias da cristandade, do desterro e da paixão, sobretudo, no seio da população negra e sobremaneira no âmago das comunidades quilombolas é, talvez por desconhecimento e não por má fé, exercer um neocolonialismo..

São conhecidas as pregações do Padre Antonio Vieira. Ao tempo em que saía em defesa da população indígena na comprovação da existência da sal “alma”, suas pregações dirigidas aos africanos escravizados os conclamava a aceitação passiva de sua condição, comparando-a ao sofrimento do Cristo. Agia pedagógica e educativamente pois “ser cristão, tanto para os índios como para os africanos trazidos para a colônia, significava o abandono de sua integridade cultural para uma integração nos valores, uso e costumes da civilização lusa”.


O QUADRO ATUAL E MUDANÇAS EM AÇÃO

De acordo com este levantamento nossas comunidades tem deficiências escolares que vão desde a dificuldade de acesso, nas localidades onde há escola mesmo em condições precárias, até a ausência completa de iniciativas que permitam que se chegue ao universo escolar. Vale ressaltar que essas comunidades se localizam, em média, a 48 km de distância das sedes dos municípios onde estariam as escolas melhores estruturadas. Entretanto, nas escolas que ofertam os anos finais do Ensino Fundamental, a distância varia de 5km a 28 km da comunidade, aproximadamente.

Um conjunto de problemas associado ao setor educacional nestas localidades foram detectados, sobretudo, no que diz respeito ao transporte dos alunos, ou seja, muitos ônibus kombis, vans, e automóveis muito antigos, comprometem a segurança dos usuários. No caso da permanência dos alunos nestas escolas, também consiste num problema emergente, pois, muitos alunos andam por muitos quilometros até chegar ao local (ponto) por onde passam estes transportes. Isto contribui para a desmotivação da criança, do jovem e até do adulto para ir ao encontro da instrução escolar. E por fim, os conteúdos programáticos destas instituições, na maioria das vezes, não mantém uma aproximação dos saberes locais, sem percepção identitária e sem a interação comunidade tradicional / sociedade contemporânea.

Assim, com os dados (ver gráficos 2,3 e 4), as CRQ’s e CNT’s possuem uma baixa média de instrução escolar. Historicamente as políticas educacionais, além de não possuir um programa para assegurar a manutenção da aprendizagem no seio destas comunidades, a inclusão nos programas oficiais já existentes se mostraram ineficazes e setorializados, deixando este segmento da população desamparado em vários aspectos.

Identificamos um alto percentual de analfabetos (17,25%). Em média, 32% da população das comunidades concluíram o ensino da 1ª a 4ª série. E menos de 4% da população adulta (de 18 a 65 anos de idade) chegou a concluir o ensino médio, o que denota grande parte da população economicamente ativa, em processo de desqualificação completa. É claro que com o Programa Paraná Alfabetizado e do Departamento da Diversidade da SEED, estes números melhoram, mas a realidade conjuntural aponta que ainda muito deve ser feito.
A preocupação com a educação dos sujeitos das Comunidades Remanescentes de Quilombo está presente nas Diretrizes Curriculares da Educação do Campo. Desde 2006 esta coordenação vem realizando formação continuada com professores que atendem alunos de áreas remanescentes de quilombo.

Fato definitivo para a atenção que vem sendo dada a essas comunidades é este Levantamento e este GT, nascido que foi na SEED, e que após visitar mais de 86 comunidades, 36 (trinta e seis) se auto-declararam e foram Certificadas como Remanescentes de Quilombos, se identificaram 08 (oito) Comunidades Tradicionais Negras e 22 (vinte e dois) indicativos de comunidades estão sendo visitadas. Diante dos resultados parciais que o GT vem apresentando, além da formação continuada de professores para tratar da especificidade quilombola, viemos inicialmente trabalhando no sentido de consolidar os dados educacionais sobre essas comunidades.

Os dados já sistematizados sobre a realidade educacional de 10 (dez) dessas comunidades (525 pessoas) nos apontam inicialmente as dificuldades de acesso escolar, já que geralmente a sua localização aparece historicamente como fator estratégico para resistir à sociedade escravista ou ao contexto da sociedade racista que se seguiu ao pós-abolição. Nesse sentido cabe salientar que, a partir da sistematização desses dados, verificamos que elas estãolocalizadas localizam, em média a cerca de 48 km de distância das sedes dos municípios onde se localizam, em uma variação que chega de 6 km (a mais próxima) a cerca de 110 (cento e dez) km (a mais distante – estas crianças se obrigam a atravessar um rio e ir estudar em Barra do Turvo-São Paulo,). Por outro lado, as escolas que ofertam os anos finais do Ensino Fundamental localizam-se em média a cerca de 17 (dezesete) km de distância (mínimo de 5 km – máximo 28 km) das comunidades

As dificuldades de acesso tem sido apontadas pelos próprios quilombolas como um dos principais fatores que prejudicam a escolarização nessas comunidades.

Eu vejo hoje que a educação poderia estar atendendo às necessidades do aprendizado das crianças com melhor qualidade. No campo principalmente o que a gente percebe é que as crianças, quando estão saindo e enfrentando as dificuldades de deslocamento da comunidade até a sala de aula já estão prejudicando o aluno; desde essa saída da pessoa de seus ambientes para chegar até a escola e quando a gente fala de deslocamento das crianças da comunidade eles enfrentam sérios problemas na caminhada para chegar até a sala de aula eles enfrentam problemas de chuva, de horário, sai de horário para chegar até a sala de aula e de volta quando sai dá escola para chegar a casa. Então os alunos estão perdendo a vontade de estudar devido esse motivo da caminhada. Isso é um fator. (Entrevista com Antônio Carlos de Pereira Andrade, CRQ de João Sura, agosto de 2007).

É então, um dos principais motivos do baixo índice de escolaridade que viemos constatamos e podemos perceber na tabela e no gráfico abaixo :
 

Escolaridade Percentual
Analfabetos 20,00%
E.F. Séries Iniciais 51,42%
E. F. Séries Finais 16,76%
Ensino Médio 4,38%
Pós Médio: 1,90%
Fora de idade escolar 5,54%
Tabela 1: Índice de Escolaridade  

 

 
Gráfico 1: Índice de Escolaridade
Índice de Escolaridade


A esse baixo índice de escolaridade se associa um alto índice de defasagem idade/série, conforme os gráficos a seguir:

 

 

Defasagem Idade/Série - Ensino Fundamental – Séries Iniciais

 

Gráfico 2: Defasagem Idade/Série - Ensino Fundamental – Séries Iniciais

 

Defasagem Idade/Série – Ensino Fundamental – Séries Finais
 


Gráfico 3: Defasagem Idade/Série – Ensino Fundamental – Séries Finais

Defasagem Idade/Série – Ensino Fundamental – Séries Finais
 
Gráfico 4: Defasagem Idade/Série – Ensino Médio


Entretanto, a distância não é o único fator que os quilombolas apontam para explicar os motivos desses índices, eles também sugerem que os conhecimentos escolares trabalhados no processo de ensino-aprendizagem, além de serem insignificantes para a realidade comunitária, ainda não contribuem para evitar o êxodo dos jovens da comunidade e sua inserção desigual no mercado de trabalho nos centros urbanos.

Porque as crianças quando tem ali toda a sua vivência no campo, quando ele saí do seu ambiente ali do campo para ir para a sala de aula num ensinamento completamente fora de sua realidade, quando vai para a sala de aula urbana, que vai aprender uma coisa que não está no seu dia-a-dia, no seu cotidiano, não batendo na sua realidade. [...] Hoje o que se percebe é que as crianças estão aprendendo uma coisa que está sempre dirigindo a criança para ir para a cidade grande, tá sempre levando ela pra enfrentar a fileira aí ... ...com gente que já tá mais preparada na cidade e quando essa criança vem lá do campo, onde fez a sua formação, ela acaba se deparando com uma outra realidade que não tem nada a ver aquilo que ela estava no campo. (Antônio Carlos de Pereira Andrade, CRQ de João Sura, agosto/2007).

Constadas as principais dificuldades que os quilombolas vêm enfrentando na área educacional, a Coordenação de Educação do Campo do Departamento da Diversidade da SEED definiu como principal meta para as comunidades quilombolas, a construção de uma Proposta Pedagógica que articule Educação e Etnodesenvolvimento para escolas a serem construídas em áreas quilombolas ou que atendam os sujeitos dessas comunidades.
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